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COTIDIANO

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ERA UMA VEZ UMA CASA...

  Haydeé Silva *

Pela milionésima vez, passei hoje de manhã pela calçada do casarão, olhei para o quintal da frente, cheio de mato, para os belos recortes de madeira da varanda, constatei que o pezinho de mixirica (ou laranja, nunca soubemos ao certo) continua teimando em crescer, apesar da falta de cuidados, e decidi: de hoje não passa! Ando incomodada com o descaso, ou pouco caso, com que vêm sendo tratados nesta Cidade dos Três Rios prédios e objetos que fazem parte da nossa história.Não vou chegar ao ponto de mandar fazer faixas e rodear com elas o casarão da Rua da Maçonaria, esquina com Nelson Viana, mas faço daqui deste espaço um apelo àqueles que no momento são os “responsáveis” pela preservação do histórico imóvel.

Como disse acima, passei pela calçada, olhei para o quintal da frente cheio de mato. Notei que há meses uma lata de tinta vazia foi deixada na varanda, e que também há meses algumas tábuas, que devem ter sido retiradas do assoalho, permanecem amontoadas num canto. Tábuas podres. Imagino como deve estar o velho casarão por dentro, e lembro dos meses que foram gastos para sua restauração. Trabalho minucioso que durou meses, executado pela equipe comandada pelo arquiteto Domingos Aguiar, recentemente falecido, e que incluiu até a fabricação de ladrilhos exclusivos, idênticos aos originais, para substituir alguns que estavam quebrados.

Desde que me entendo por gente passo pelo local diariamente, e com alegria quase infantil vi ressurgirem, à medida em que a restauração avançava, as pinturas da varanda lateral, os detalhes da fachada, a recuperação das portas e janelas danificadas pelo tempo. Detalhes que me remeteram à infância, aos tempos em que, aluna da Escola Nossa Senhora Aparecida, dobrava a esquina da Rua Nelson Viana, e, caminhando pela Rua da Maçonaria, ia curtindo o casarão dos Obeica, pessoas da família às vezes na janela, uma senhora idosa, talvez a matriarca Dona Said, sentada na varanda, empregadas circulando pelos cômodos, cenas que conseguia ver pelas janelas às vezes abertas. Na minha imaginação de criança, o casarão era uma mansão cheia de quadros, lustres e móveis antigos. Meu sonho de conhecer o interior só foi realizado quando ali não morava mais ninguém, as salas de frente para a Rua Nelson Viana transformadas na Loja da Dona Genir, uma das pessoas mais simpáticas e bonitas que já conheci. Local onde comprava as luvas, meias três quartos e boinas, para o desfile de 7 de setembro. Anos mais tarde, o casarão já restaurado, com a promessa do prefeito da época de sua transformação num “centro cultural”, enfim percorri outras dependências do imóvel, à esta altura tombado pelo Patrimônio Histórico. Nas salas cedidas à Associação dos Artesãos passei muitos sábados, dia em que dava plantão na “lojinha” de produtos feitos por mim e pelas amigas da Associação. Foram alguns anos, talvez dois ou três, em que continuamente me preocupei com o destino da casa da qual tanto gosto, e que parece não ter a mínima importância para quem deveria zelar pela preservação da história da cidade.

Quando chovia passávamos o maior “sufoco”. Baldes e bacias tinham que ser espalhados pelas salas, inúmeras goteiras transformavam o piso de tábuas corridas num lago. Certa vez, um morador do Edifício Spazio de La Vita nos alertou: de seu apartamento constatara que havia inúmeras telhas quebradas, o que explicava as goteiras. Levamos ao conhecimento da Prefeitura, a locatária do imóvel, mas pelo menos no tempo em que continuei na Associação, não apareceu ninguém para fazer os reparos no telhado. Por muitas vezes ficamos sem energia elétrica, que era cortada por falta de pagamento, mas continuávamos ali, porque o “ponto” era bom, a casa ampla, arejada e, o melhor de tudo, não pagávamos aluguel! Nós, as artesãs, cuidávamos da casa da melhor forma possível, muitas vezes pagamos do próprio bolso pessoas para fazerem o serviço de capina, mas chegou uma hora em que permanecer ali se tornou perigoso.

Por três ou quatro vezes ladrões invadiram a casa, arrombando a porta de acesso pela Rua Nelson Viana. Na época, lembro-me que esperamos horas pela chegada da perícia, e que a loja de artesanato ficou algum tempo fechada, porque a porta que fora arrombada teria que ser restaurada com a madeira original, para não descaracterizar a construção histórica. Depois dos arrombamentos sempre pedíamos à Secretaria de Cultura que providenciasse um guarda para o local, a solicitação foi atendida algumas vezes, por pouco tempo. O guarda aparecia alguns dias e depois sumia de vez. Já naquela época, a impressão que eu tinha era de que o “casarão” não tinha lá muita importância para nossas autoridades, embora o aluguel continuasse a ser pago com dinheiro público.

Bem, hoje a Associação dos Artesãos não ocupa mais o casarão. Minhas amigas se cansaram de tantos arrombamentos, no último foram levadas todas as mercadorias e de nada adiantou pedirem à Prefeitura para colocar guardas permanentemente no local. Não faço mais parte do grupo, e quanto mais passo pelo casarão mais me convenço de que aqueles que pagam pelo seu aluguel (que não deve ser barato) não estão nem aí para o dinheiro gasto inutilmente nem para a deterioração do imóvel. Casas fechadas criam mofo, e neste caso, por se tratar de uma construção antiga, a manutenção deveria ser, a meu ver, periódica. Todos os dias, ao passar pelo local, torço para ver algum sinal de trabalho, alguma atividade que demonstre a presença de alguém cuidando do casarão. Mas nem sinal! Pelo visto, o imóvel terá o mesmo destino dos vagões da EF Leopoldina, que apodreceram abandonados nos fundos da Casa de Pedra.

Três Rios é cidade sem história, ou com história que a poucos interessa. Melhor alugar construções imponentes no centro da cidade para sediarem repartições públicas do que se empenhar para preservar e ocupar casas que, por efeito de tombamento, não podem ser modificadas nem demolidas. Dona Said, matriarca da Família Obeica, deve se revolver no túmulo, ao ver a casa onde criou sua família se deteriorar aos poucos. A venerada mestra Hylda Caldas, boníssima pessoa que sempre foi, se viva fosse e passasse pelo local, certamente iria às lágrimas, ao ver o estado da construção onde funcionou por anos a sua escola. Se estivesse entre nós, Domingos Aguiar estaria com certeza muito chateado, ao ver o fruto de seu trabalho, que com certeza foi muito bem remunerado, ser tratado com tanta indiferença. Quanto àqueles que continuam vivos e se preocupam com a velha casa, denominada anos atrás como Centro Cultural Generoso Portella, só resta cruzar os braços e esperar, torcendo para que ela não tenha o mesmo destino (triste) dos vagões que apodreceram nos fundos da Casa de Pedra.

* Jornalista