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Pássaros

Pássaros



Haydeé Silva * 

 

Coisa que nunca vou entender é por que oferecem  à gente pacotes de tevê a cabo com tantas opções. Alguém, algum dia, vai conseguir assistir pelo menos UM programa por dia em  cada um dos canais de um   pacote de sessenta, por exemplo? Claro que não, a maioria a gente nem sabe que existe! E de vez em quando ainda inventam umas promoções e acrescentam mais alguns à lista e ao preço da fatura, é claro. A novidade, no meu pacote da Oi TV, nas últimas semanas, foi um tal canal Ideal, que não tem nem som direito e a imagem deixa a desejar. De vez em quando passo por ele, e parece que o programa de entrevistas é sempre o mesmo! Mas deixa prá lá, o fato é que às vezes tantas opções fazem a gente nem assistir nada direito. É um tal de zapear prá lá e prá cá...

Mas a brincadeira às vezes traz boas supresas. Foi sem querer, por exemplo,que assisti, há uns domingos atrás, ao maravilhoso Um Sonho de Liberdade, com Morgan Freeman, que a-do-ro,  e um  outro ator que também gosto muito, mas esqueci o nome.

Algumas semanas  atrás, numa tarde de   sexta-feira, ouvia a  apuração dos desfiles das  escolas de samba de Três Rios  se encaminhando para o resultado de sempre, para espantar o sono  resolvi juntar rádio e tevê e dei de cara com o final de um filme que já vi umas três vezes, e continuo gostando: Uma Secretária de Futuro, Harrison Ford bem mais novo, mas não tão  charmoso quanto hoje, e  Melanie Grifith, que não vejo faz tempo. No elenco também, desta vez como vilã, Sigourney Weaver, aquela do filme com os gorilas. Cena final, a secretária vira executiva de sucesso, conquista  o galã, a vilã é despedida, Carly Simon canta Let the river run, o filme acaba. Entra outro quase imediatamente, título curto, desaconselhado para menores, temática: drogas. Fime: BIRD. Penso, não vou ver, deve ter briga de gangues, pancadaria, prostituição.... Mas são cinco da tarde, ainda demora um tempinho prá começar Jóia Rara, nos créditos iniciais aparece Forest Whitaker (a-do-ro também!) no papel principal,   a filha brinca no computador, decido ficar no velho e bom TCM.

Não sei até agora se fiz bem ou não. Bird é um drama de 1988, que, soube depois, marcou a estréia de Clint Eastwood como diretor e deu ao Forest o Oscar de Melhor Ator. Mas não é filme prá se ver numa tarde preguiçosa. Devia ter optado por um Discovery Kid da Vida, um Viva, sei lá! 

Bird é, como diz minha amiga Daniele Cardoso, "tenso". A gente mal respira. Não há uma cena descontraída, os cenários são sombrios, iluminação escura. É a história de Charlie Parker, ou The Bird, saxofonista  americano nascido em 1920 e que faleceu em 1955, aos 34 anos, no auge da carreira. Considerado até hoje um dos melhores músicos de jazz do mundo, criador do estilo bebop, apesar do talento e fama teve a carreira pontilhada por altos e baixos, sendo inclusive preso e proibido de trabalhar em vários estados americanos. Motivo: uso de drogas. Charlie Parker era viciado em álcool e heroína, substâncias que  o levaram à morte prematura. 

Parece história atual, não é mesmo? Quantos artistas morreram nos últimos anos, pelo mesmo motivo? No entanto, lá se vão 59 anos. Constato, então, que a maldição da droga assola o mundo há muito mais tempo do que imaginamos, e que a coisa só vem aumentando, chegando cada vez mais próximo de nossas famílias e nossas casas. Talvez muitos dos que lerem esta crônica conheçam, ou até mesmo tenham em casa,  um viciado em drogas. Ou melhor, viciado ou viciada, eis que a coisa atinge igualmente homens e mulheres. E quem é esta pessoa que precisa diariamente de uma ou várias  pedras de crack, de um cigarro de maconha ou várias carreiras mde cocaína? Qual a diferença entre um (a) dependente  e nós, não usuários? Problemas? Todos temos; angústias? Idem. Desemprego, dívidas, mau relacionamento familiar, são problemas que acontecem em todo o mundo, a toda hora, e a maioria das pessoas não recorre às drogas para resolvê-los. No caso de Charlie Parker, o motivo não  fica   muito claro, pelo menos no filme. Talvez conflitos existenciais, o fato de ser um negro talentoso disputando lugar ao sol num universo extremamente  competitivo, batalhando para ser reconhecido e rodeado de tentações. Bird é um filme recheado de desgraças, o tempo todo focado na decadência de um homem que vai aos poucos se entregando às drogas, com algumas tentativas de se livrar do vício, amparado pelo amor de uma mulher, que também tinha a vida “torta”, mas se regenerou e lhe deu  três filhos.

Nem a família salva Charlie Parker do abismo da heróina e do álcool. Sua submissão é tão grande que, no dia da morte de uma das crianças, nem ao enterro ele consegue ir, passa o tempo todo num quarto de hotel injetando a droga e mandando, via telefone, telegramas para a mulher. Tempos depois, acaba morrendo, enquanto visitava uma amiga. O médico responsável pela necrópsia constatou doenças no coração, fígado, pulmão, e o identificou como um homem de 65 anos. Ele tinha apenas 35...

Dizem que a vida imita a arte, e como cinema é uma arte, penso em quantos Charlies Parker existem por aí. Talvez agora mesmo, enquanto escrevo, muitos deles estejam se drogando, trancados em quartos escuros, trancados dentro   deles mesmos, enquanto o mundo exterior continua cheio de alternativas para uma vida sem sombras, vida que eles talvez até  desejem, mas não têm forças para ir buscar.   Que algum dia eles possam  ouçam o grito da VIDA, é o que espero, porque pode haver VIDA depois das drogas. Quanto a mim, vou mudar rápido de canal (afinal, tenho mais de 60 para escolher!) na próxima vez em que começar um filme com o tema drogas. O dia-a-dia já é tenso demais.

* Jornalista