Tenho um amigo que está indo embora. E fico imaginando o que ele deve estar pensando desde que os médicos disseram que não há mais nada a fazer. É adulto, mentalmente sadio, então nada lhe foi escondido. Desde o início, soube da gravidade do seu caso, a equipe de oncologistas explica a ele detalhadamente tudo o que está acontecendo a cada exame que faz. Tomografias, ressonâncias e exames de sangue passaram a ser rotina para quem, há menos de um ano atrás, só ia ao médico para tratar de problemas na coluna.
Meu amigo é jovem, dinâmico, trabalhador, e está indo embora numa fase da vida em que os humanos costumam estar mais ativos que nunca. A vida começa aos quarenta, dizem. Ele, aos quarenta e dois, está se despedindo da sua, talvez cheio de planos, de idéias e ideais. Desde que soube do caso, estou indo visitá-lo periodicamente, à medida que os afazeres me permitem. E se nos primeiros meses me entusiasmava, ao ve-lo forte, corado e otimista, agora me entristeço, porque percebo a “doença” ganhando a cada dia mais terreno, deixando-o fraco, deprimido. Tenta aparentar normalidade e inventa coisas para fazer, conversa, anda pela casa, mas o olhar está perdendo o brilho, e na voz não se percebe mais aquele tom quase exaltado, às vezes rude, o jeito que ele tinha de se expressar que não escondia o ser humano de boa índole e bom coração.
Ele bem que tenta fazer sala para as visitas, mas às vezes se retira, vai pro quarto e deixa que o mal estar provocado pela quimioterapia tome conta. Semanas atrás, o tratamento não fazia tanto mal, mas à medida em que a “doença” ganha terreno, as reações ficam cada vez mais fortes.Percebo familiares e amigos fazendo suas vontades. Toda hora chega alguém com uma foto, uma flor, um mimo que ele agradece sorrindo, apesar do mal estar. O que estará se passando em sua cabeça? O que pensa uma pessoa que sabe que tem os dias contados? Se ele quisesse falar sobre isso,sobre como se sente, estaria disposta a ouvi-lo, mesmo que depois chorasse oceanos inteiros. Mas não sou íntima a ponto de provocar uma conversa desse tipo, nem forte o bastante, nem religiosa o suficiente, nem...nem nada que sirva de desculpa para me intrometer num momento tão íntimo.
Interessante, percebo que a eminência da morte também pode ser uma coisa íntima, que não é dividida com ninguém, ou então só com alguém muito, muito próximo. Alguém com quem se divida a cama, por exemplo. Se meu amigo fosse casado, talvez compartilhasse com a esposa os momentos de dor e de dúvida que tem passado.
Que lembranças se apossarão dele, nesses que talvez sejam seus últimos dias? Será que passa pela sua cabeça o tal filme do qual muito se fala, com momentos bons, momentos ruins, fragmentos da vida que vai se extinguindo? Família e amigos se esforçam para realizar seus desejos, desde os mais infantis até os complicados, como rever pessoas afastadas há décadas do seu convívio. Numa das visitas que fiz, no começo de novembro, percebi que a árvore de Natal já estava montada, e entendi que fora iniciativa dele, talvez por medo de morrer antes de dezembro chegar. Mas e os sonhos mais secretos, aqueles que a gente nunca conta para ninguém? Meu amigo há de ter um, como todo mundo, e talvez o leve para o túmulo. A “doença” avança, ganha terreno, minando suas forças e transformando seu corpo. Não há mais otimismo em sua voz, ele não repete mais a frase que ouvi muitas vezes, há alguns meses atrás: “Tem muita gente com câncer, não é?” Tem.
* Haydeé Silva é jornalista